24 de abril de 2024

Rotas de fuga

17 min read

ROTAS DE FUGA

Por António Pessoa

Um colunista consagrado vive em estado de quase clausura em seu apartamento, dividindo os seus dias com as vozes que o atormentam, seus artigos, cigarros e o descrédito que tem por si mesmo. Do alto do 12º andar, mira repetidamente em uma possível mudança fatídica a convite das alucinações que se misturam aos efeitos dos remédios que o sustentam.

Em meio aos seus dilemas internos, se vê em meio à pandemia que, ao invés de afastá-lo ainda mais do mundo externo, o faz sentir-se acolhido pelo sentimento coletivo de aflição. Em meio ao silêncio das vazias madrugadas, depara-se com a necessidade de fugir de si mesmo. É ao mesmo tempo vítima e algoz dentro de um só corpo.

Impaciente e incrédulo sobre a sua falta de perspectiva, exprime momentos de humor sombrio, de extrema sinceridade com seus conflitos e revive nesse conto a tentativa de resgate da sua alma perdida e açoitada por ele mesmo.

Sua bússola perdida no meio do caminho o faz atravessar um deserto pessoal repleto de questionamentos, processos cíclicos e ameaças internas. Mas entre divagações, suas rotas de fuga poderão ser o caminho para um possível reencontro consigo mesmo.

A folia da despedida

A tradicional alegria do Carnaval no Rio de Janeiro já se despedia com o enredo entoado pela última escola de samba que deixara a Avenida. Ainda sob o êxtase dos confetes e das serpentinas, arlequins e colombinas misturavam sentimentos de euforia com o prenúncio de uma longa despedida.

Aos poucos, as feições alegres desenhadas pela passageira amenidade social da Corte do Rei Momo cedia lugar à ameaça que à galope se avizinhava. Tempos atípicos circundavam os tabloides e o que era uma longínqua realidade, agora já se fazia anunciar pelo eco temeroso de trombetas invisíveis.

Os noticiários gradualmente elevavam o tom apontando para a iminente obrigação de mudanças, revelando a face imperativa do distanciamento que se empunharia sobre o cotidiano de todos. Sem distinções ou prazo definido.

Do décimo segundo andar, à beira da varanda, dividia o segundo maço de cigarros aberto antes do fim da tarde com o abraço singular da solidão que, sadicamente, apertava o meu íntimo, aproveitando-se do peso que pairava sobre os meus ombros.

Os monólogos se tornavam cada vez mais frequentes durante as madrugadas de insônia, culpa e medo. Os atalhos se demonstravam mais convidativos e sedutores. Talvez efeito dos remédios que só conseguiam me nocautear ao amanhecer.

A minha depressiva quarenta havia começado muito antes de todo esse cenário quase apocalíptico se instaurar. Meu isolamento forçado veio lentamente de dentro para fora. E os desconhecidos rostos que ainda atravessavam o meu olhar se davam, então, somente pela necessidade das raras saídas à mercearia da esquina ou pela rápida visita do entregador de delivery.

Ele já me conhecia e já nem me cumprimentava mais. Apenas passavam a máquina para o pagamento das compras diárias e deixavam os meus pedidos em seus pacotes amarrotados.
Mas, voltando à minha usual agrura interna, dia a dia aproveitava as noites para escrever. Este sempre foi o meu ofício, mas nem sempre neste horário.

O rito diário

O ritual era quase sempre o mesmo. A Smooth tocava baixo na caixa bluetooth, os cigarros quase sempre se revezavam no cinzeiro cheio e a criação de estórias que nunca vivi, estampavam colunas diárias de autoajuda.

Era quase impossível que, naquele estado de quase aniquilação, ainda conseguisse ajudar alguém e o convencesse a sair da escuridão. Um antagonismo indecifrável.

O problema todo é que não somente ajudava. Era tido como um sucesso de acessos nos diversos portais para os quais escrevia. A minha caixa profissional de emails vivia quase sempre repleta de mensagens, agradecimentos, dúvidas e até ameaças. Sobre esses últimos, vez ou outra, era escolhido como alvo para os disparos virtuais dos casos mais graves. Era indiferente.

Sobre as mensagens, lia algumas, deletava outras, mas quase sempre não respondia a nenhuma. Ao menos nos últimos meses. Estava sem paciência.

Não acreditava no que eu mesmo escrevia, mas sabia que de alguma forma surtia efeito. Placebo ou não, pouco me importava. Precisava apenas manter o único fio de sanidade que ainda me restava.
Escrever me mantinha vivo. Ao menos sobrevivendo. Não era a hora de me afogar. E as palavras me permitiam boiar no temporal que se alimentava das minhas própria dúvidas e fraquezas.

Essa angústia permanente havia sequestrado o meu humor. Sabia que não poderia culpar ninguém pelos meus desvios. O caminho pode ser compartilhado, mas no fundo as opções e os obstáculos são somente seus.

É o ônus do livre arbítrio. E, como disse uma das várias psicólogas pelas quais nem esquentei lugar: “Você pode saber do problema, mas isso não significa que ele estará resolvido”.
Ter ciência do que há é um simples detalhe. A questão está em debulhar a espiga e saber como fazer pipoca até o último grão.

Conhecer o problema é uma coisa. Mas resolvê-lo dentro de você, mastigá-lo e depois colocá-lo para fora nem sempre é uma sequência simples. É uma peregrinação sem destino certo.
Às vezes o dilema fica lá, dentro da gente, brincando de espremer seu cérebro, amanhecendo cada dia em um lugar, trazendo novas dores e, se calhar, revivendo antigas e esquecidas mágoas. Uma tortura que nos faz duvidar se a dor é física ou se o tormento está encravado na alma.

A nostalgia da infância
Saudades do tempo em que o meu principal problema era achar o valor de uma equação matemática. Tempos de moleque fardado, de criança vadia, de menino maroto, da hora do lanche, da pureza da algazarra, do riso descomprometido em que a felicidade brotava com tanta facilidade que nem precisava ser entendida ou explicada. Bastava ser natural e constante.

Entre divagações e lamentos, me entrego ao saudosismo. Lembrando do que se foi e por alguns segundos esqueço o que está presente me acorrentando. É fugitivo, eu sei. Mas é assim que funciona uma das minhas inúmeras e viciantes rotas de evasão mental.

Nisso tenho foco. Fugir e de preferência para bem longe de mim. Mas vai que deixo. Sou vítima e algoz em um só corpo. As marcas não mentem.

Bem, voltando ao meu decadente estaleiro, após enviar o material para as redações, quase sempre, vejo o dia amanhecer. Fumo o último cigarro antes de tentar dormir e tomo mais alguns comprimidos. Acho que nem fazem mais efeito. Mas já estão incrustados em seus horários que nem mexo mais. Às vezes, são cinco de uma só vez.

Desde que o tal medo pandêmico se aproximou, confesso que passei a questionar para onde tudo isso iria. Revelo que, após os primeiros pensamentos, me senti ironicamente mais acolhido pelo mundo.
Explico. O sentimento de medo já não pertencia mais somente a mim. Sei que parece algo sombrio, mas foi assim no início. Uma espécie de cumplicidade coletiva se alastrava e trazia certa satisfação ao meu egocentrismo.

Parecia que se não estava feliz, ao menos agora, quase ninguém também estaria. Todos apavorados em suas celas individuais. O sentimento de incapacidade que há meses me acompanhava, agora selava todas as casas, vilas e ruas, idades, credos e religiões. Sem pedir sequer licença.

Eu não estava mais sozinho diante do incômodo. Todos ficariam semelhantemente angustiados.
Mas isso não interessa a essa altura. Ao menos para você. Aliás, essa egoísta satisfação passageira é só minha. Não precisa ser entendida, vitimizada ou questionada. É apenas um relato da minha intimidade insana.

O desespero e a prece

Mas um fato talvez interesse. Após tanto tempo apático ao andar desacreditado da humanidade, naquela primeira ou segunda semana em que foi decretado o isolamento, não lembro ao certo, vi durante o início de uma madrugada qualquer, já que todas eram iguais para mim, no vazio do silêncio, precisamente quatro andares abaixo do meu, no prédio defronte, uma senhora que aparentava seus setenta e poucos anos.
Ajoelhada na sala sobre uma almofada, em frente ao seu altar e santos de devoção, iluminada somente por uma pequena e fina vela, acesa em intenção dos seus, rezava entre lágrimas copiosas que desciam por sua face enrugada, revelando as cicatrizes do tempo. Este, aliás, é imperdoável.

Em uma das mãos, a pequena e curvada mulher mirava algumas fotografias. Provavelmente retratos de familiares; filhos, netos ou mesmo alguém pelo qual tinha afeição. Seu finado marido, seus pais, talvez.

A cada oração, beijava os retratos em preto e branco, um por um, como em um tom de despedida. Sem perceber que a brasa do cigarro já me queimava as pontas dos dedos, o meu olhar se fixava atentamente àquela cena marcada por uma singular beleza quase cinematográfica, mas imbuída pelo pedido de ajuda que transbordava do olhar marejado da septuagenária.

Compadecimento e proximidade

Eu, após todo aquele período de parcial clausura, percebi uma ponta de compadecimento por alguém. Um sentimento que me fazia ouvir, mesmo de longe, suas preces. Uma esforçada leitura labial e estabelecida, capaz de me fazer, sem perceber, compartilhar a sua oração em silêncio.
Assim seguiu-se por quase uma hora. O tom aflitivo, por aquele curto espaço de tempo, apequenou as minhas dores. Desta vez não por comparações, mas por parecer tamanha, capaz de pôr em xeque a veracidade das minhas chagas recentes. Como se por um breve período, todas as cicatrizes tivessem coagulado o rubro clamor das minhas feridas.

O distanciamento que para mim não era mais novidade, para aquela senhora, presumi, transfigurava-se como a adaga cruel da solidão, cuja lâmina parecia atravessar o seu destino, àquela altura da vida, de forma impiedosa.

E em seu ofertório silencioso, porém condoído, transcrito por uma cólera insubmissa, era possível sentir, mesmo à distância, a face da saudade que pairava sobre a sua alma.

Os noticiários, inclusive, dedicavam-se de maneira efusiva a dissecar a pandemia e os seus inúmeros efeitos na vida das pessoas e a mudança dos paradigmas até então imutáveis. Fatos tão comuns e por vezes subestimados em importância, passaram a ser imensuráveis.

O ser humano perdera a companhia do seu renegado semelhante e passara a ter que conviver intimamente com um desconhecido, ele próprio. Vinte e quatro horas por dia, sem desvios ou procrastinação. Agora, face a face, o indivíduo precisava conhecer a si mesmo.

Dormi pensando naquela cena. Aliás, dormi por tanto tempo como há meses não conseguia. Um sono profundo, exausto. Talvez por ter, momentos antes, pensado em alguém que não fosse eu mesmo. Sem querer, percebi depois, que me importei com a dor alheia, de forma que meus pesadelos recorrentes deram trégua.

No mesmo dia, quase que inconscientemente, visualizei o apartamento daquela senhora algumas vezes. Com a desculpa de ir à varanda fumar, a buscava com o olhar, passeando visualmente pelos cômodos que conseguia avistar. Cheguei a ver um felino cinzento passeando por entre as suas plantas, talvez em busca de comida, mas a sua presença ainda era uma dúvida.

No fim da noite, quando já quase a havia apagado da lembrança, percebi a sua viva presença, sentada à varanda. Pensativa, olhava para o céu como se contasse as estrelas. Nos avistamos, e ela simplesmente acenou, como se conhecidos fôssemos. Por compaixão, pena ou reflexo, gesticulei em troca e a fitei por alguns segundos.

Ela sorriu de uma forma tão generosa que fez-me lembrar o afeto de minha nonna, capaz de abraçar alguém apenas com olhar, fazendo percorrer um súbito conforto que há vidas não experimentava. Nem mesmo com todos os remédios que durante os últimos tempos intoxicavam os meus sentidos e a minha alma.

Ela apontou para os seus santos. Fez uma breve pausa. Em seguida os indicou para mim e juntou as suas mãos. Entendi que naquela noite, estaria em suas preces.

Parecia conhecer os meus temores e talvez fosse capaz de conversar na brevidade do silêncio com as vozes que rodeavam os meus pensamentos.

Talvez fosse uma vidente, uma benzedeira ou mesmo uma descendente de bruxas escandinavas perseguidas pela Inquisição. O castanho penetrante dos seus olhos era de uma infinitude tamanha, capazes de decifrar à distância cada uma das minhas mazelas.

Repousei a minha mão sobre o lado esquerdo do peito indicando a minha gratidão àquela senhora que falaria com o invisível e pediria por mim, há muito incrédulo. Nesse ponto permito-me uma nova explicação.

Fui criado em colégios católicos, e os dogmas sempre foram uma constante em minha infância e adolescência. Mas, não sei bem em que parte do caminho, perdi a fé. Não nos avisos, nas orientações e nas setas da caminhada. Perdi a confiança em mim mesmo.

Voltando àquela cena, baixei o meu olhar como se a benção daquela senhora pedisse. Imediatamente ela desenhou o sinal da cruz no ar, balançou a sua cabeça e entrou.

Sentado, contemplei de longe os seus guias iluminados pela gruta onde simbolizados ficava a Sagrada Família e revivi cenas que não pensara mais ter guardadas, abrindo um baú empoeirado e jogado no sótão. Meus sentimentos confusos pareciam querer gritar em busca de algum tipo de sanidade esquecida e sem perceber, ali mesmo adormeci, acordando somente quando o sol já estava a pino sobre o meu semblante.

Mesmo em pleno dia, não via ninguém ao redor. As casas todas imersas em uma mudez também pandêmica, não davam sinal de vida. Nenhum movimento também percebi no apartamento daquela senhora.
Após dois ou três cigarros, um dos habituais entregadores tocou à porta. A refeição que trazia era consumida em duas vezes. Não tinha apetite. O fumo tirava a minha fome. Comia por necessidade.

Mesmo sem o formal cumprimento, ele perguntou se eu soube da senhora que havia sido encontrada morta, vítima da pandemia, no prédio em frente dois dias antes. Prontamente respondi que não pois não conhecia quase ninguém por ali e raras eram as minhas saídas até a rua.

A resposta imediata não foi sinal de mau humor ou desejo de ignorá-lo. Pelo menos não naquela ocasião. Mas a surpresa de, mesmo ele tendo informado que a dita falecida foi encontrada há dois dias, por algum motivo associei à figura da senhora da noite anterior.

Rapidamente voltei à varanda para, por desencargo de consciência, ter a certeza de que não era ela. O entregador poderia ter se enganado com as datas. E, estranhamente, o apartamento quatro andares abaixo do meu estava totalmente vazio. Restara apenas a pequena gruta …

Se um traço de nitidez havia se aproximado da minha visão naquelas últimas 48 horas, a cena vista me deixara atônito. Mesmo que fosse aquela senhora, não teria dado tempo para que a sua família tivesse dado cabo de seus móveis, roupas e tudo o mais.

E, ainda que não fosse, como teria ela evaporado. Rezara por mim? Por onde estaria?
Já não sabia se estava confuso, alucinado pelo excesso de remédios, cigarros e fuga da realidade. Enquanto me questionava, por pouco pensei ter visto o mesmo gato atravessar a sala. Sinal que alguém ainda estaria por ali. Mas, até a noite ninguém mais deu sinal de vida. Nem mesmo o felino.

Não quis tentar entender o que teria acontecido. Voltei à minha cômoda insensibilidade e busquei novas rotas para desviar dos caminhos racionais. Optei pelos noticiários.

Esses tinham um poder catatônico que pareciam entorpecentes com os seus repetidos comunicados. Era como se os fatos fossem cíclicos. Mudavam apenas a vestimenta e a hora. Eram entediantes.

Ao menos, dividiam espaço com a maledicência das vozes consonantes que invadiam os meus pensamentos e aumentavam o tom com o início da noite. Eram elas dentro de mim e os telejornais falando na TV.

Tudo ao mesmo tempo. Um falatório só. Era a minha multidão pessoal, no meio da qual perambulava sentado, guiado pela cadência das informações, os sussurros dos invisíveis e os questionamentos provocados pelas substâncias que percorriam meu físico debilitado.

Já passava das 22 horas e precisava fazer os artigos de autoajuda do dia seguinte. Escrevia para seis canais voltados para o tema. Não tinha dificuldade em produzir. Aliás, sempre tive muita facilidade para redigir, mesmo não acreditando, hoje, em metade do que rascunhava. Se tivesse eficácia comprovada, já teria me curado.

Mas, como disse antes, surtia efeito na maioria dos leitores. Acho que no fundo, modéstia à parte, eu os convencia.

Buscava com que cada artigo literalmente espremesse o melhor de cada indivíduo, o fizesse reviver o que ele tinha de melhor ou descobrisse o que até então havia deixado para trás.

Inúmeras vezes, recebi emails com agradecimentos de pessoas que estiveram com um pé para fora do precipício, que por um fio de cabelo não experimentaram passar a linha tênue entre esta vida e o outro lado.

Relatavam experiências, abandono de vícios, reconstruções interiores e todo esse tipo de estória com fim bonito digno de enredos de novelas.

Quando comecei, fazia muito bem para o meu espírito – é a primeira vez que falo nele, percebe? – me sentir útil ou querido. No fundo, acho que todo ser humano, feliz ou não, busca exatamente isso, ser aceito, admirado, querido.

E quando não é, abandona a própria vida para cuidar dos males alheios. Uma forma de não enxergar mais a si mesmo para sobreviver de comparações entre o que está ruim, no caso ele mesmo, e o eventual pior ainda, no caso o seu alvo.

Mas, voltando a mim. Sempre foi prazeroso e fácil desvendar a alma humana. E por isso, os meus artigos voltados para o entendimento do outro ganham vida própria. Por vezes, nem percebo. São quase que expelidos no ecrã do meu laptop.

Dali, seguem para os canais e invadem as mentes que precisam ser alimentadas.
Porém, o que antes era construído com prazer e preocupação, hoje se resume apenas à necessidade que ainda tenho por me manter. Aliás, minto.

A minha necessidade de se manter através dos artigos não é uma questão financeira. Escrevo para manter um mínimo de sanidade.

Com o reconhecimento que tive ao longo das últimas décadas – não tente saber qual a minha idade. Isso não faz diferença para você – já não dependo dos meus manuscritos. Gosto desta palavra, remete ao antigo. Sou extremamente nostálgico, conforme já demonstrado.

Divagações e desvios

Aliás, todo depressivo inveterado deve ser. Por culpa, opção ou fuga. E como você sabe, sou fugitivo ao extremo. E divago. Tanto que me perco no meio de perguntas que ainda nem construí. Preciso reler para saber onde estava. Aliás, sobre meu ofício, já é o bastante.
Acho que entrei nessa paranoia cíclica após perceber que não tinha mais sonhos. Um homem sem sonhos, acomodado sobre o peso da sua bagagem, envelhece apenas. E isso pode acontecer até quando se tem trinta ou quarenta anos.

Basta perder o rumo. E isso já tinha acontecido comigo há algum tempo. Em algum momento, deixei a bússola cair no caminho. Continuei andando sem rumo, desviando, e quando percebi, meus sentimentos foram sendo deixados pela trilha sem pegadas, sem amigos, sem perspectivas.

Um homem é capaz de ser tão miserável a ponto de ter somente bens materiais. E mais nada. E o receio de ser irreversível era o meu maior medo.
O que havia conquistado não me preenchia mais. Não fazia sentido para mim, mesmo que aparentemente fosse a tábua de salvação para muita gente.

O convite ao abismo

Toda noite, daquela altura do 12º andar, enxergava lá embaixo alguém acenar, chamando meu nome. Como se dissesse vem cá, pula. Vem ver o que te espera. Às vezes, era uma multidão que parecia fazer coro, entoando o funesto convite.

Quantas e quantas vezes pensei em atendê-los, mas por algum motivo, ainda resistia. O mais irônico, é que depois que o mundo resolveu pisar no freio e enxotar a todos para dentro de casa, deixando as ruas vazias, as almas sofridas e em dúvida, algo mudara.

Conforme disse antes, eu me sentia mais parte do todo. Afinal, todos estavam com o mesmo problema. Preocupados, tentando dar marcha ré e rever seus conceitos.

O que antes desprezavam ou mesmo acreditavam ser imutáveis, agora era motivo para desespero. O simples passara a ser essencial. A crença de que tudo poderia acabar em pouco tempo levava a maioria ao caos interno. O pior inimigo de um homem é ele mesmo.

Surto coletivo

A pandemia talvez pudesse fazer ressurgir o que havia de bom na humanidade. E nesse meio, talvez eu me incluísse. Minha audiência com os artigos subiu ainda mais e não faltavam convites para escrever em novos portais.

Infelizmente ou não, todo mundo havia resolvido surtar ao mesmo tempo e precisavam literalmente se auto ajudar. Durante o primeiro mês, escrevi quase em tempo integral. Tanto que mal parava para fumar.
O prazer em me sentir útil, agravado pela necessidade coletiva de uma palavra de esperança, reavivara meu interesse pelo outro. Descobri até que o entregador se chamava Celso, tinha 21 anos e uma filha de seis meses.

Que o meu vizinho de porta, um capitão reformado da Marinha, vivia só há alguns anos e que o porteiro do meu prédio já trabalha lá há cinco anos. Eu mal sequer sabia o seu nome, até então.
Detalhes pequenos que pareciam ganhar grandes proporções em minha aproximação. Não com eles, mas comigo mesmo. A cada dia, em doses homeopáticas, algo parecia reviver, como se a vida ao deserto voltasse a ter novo semblante.

Sem pressa e sem cobranças, já não sentia o peso da lança sobre a minha cabeça com tanta intensidade. No mais, fui eu mesmo que a coloquei nesta posição. As rotas de fuga, pareciam se desvencilhar do meu labirinto interno e começavam a apontar para um pequeno oásis no qual seria possível refrescar minhas tormentas menos densas.

Pedras no caminho

A curva ainda ascendia. O confinamento continuava apertado e não haviam prazos definidos. Muitas continuavam a partir.

Eu permanecia isolado, porém um pouco mais perto de mim mesmo. A convivência ia se tornando um pouco mais pacífica. Menos dolorosa.

Por entre as repetidas semanas que se seguem, não digo que deixei a minha mala de pedras para trás. Carrego muitas ainda, mas parecem mais leves.

As vozes continuam vindo, noite após noite. Umas vezes com tom mais elevado, outras nem tanto. Mas aprendi a conversar com elas. Uma a uma. Às vezes, me fazem até sorrir.

Tudo é mutável. Podemos nos adaptar. Seja na dor ou não. Basta ser um dia de cada vez.
Agora sobre aqueles que gritavam o meu nome convidando para pular, vez ou outra ainda aparecem. Mas sempre que chamam o meu nome, olho quatro andares abaixo e revejo aquela velha senhora. Sim, ela tinha partido dois dias antes de conhecê-la.

O entregador estava certo. Mas sabe de uma coisa? Ela continua lá. Nunca se ausentou. Na verdade, quem esteve ausente, fui eu.

E toda noite, ao lado de seus santos e preces, trocamos olhares, rezamos juntos, e nos despedimos com o mesmo sorriso e o seu sinal da cruz a me abençoar.

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